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O eletrocardiograma na fase aguda da Doença de Chagas por transmissão oral

O eletrocardiograma na fase aguda da Doença de Chagas por transmissão oral Dilma do Socorro Moraes de Souza1,Adriana de Jesus Benevides de Almeida1, Francisco de Assis Costa2, Elenild de Goes Costa1, MariaTereza Sanches Figueiredo1, Rui Manoel dos Santos Póvoa3

Resumo

Fundamentos: A região amazônica sempre foi considerada área de baixo risco para a doença de Chagas (DC).

Objetivo: Relatar as alterações eletrocardiográficas observadas na fase aguda da DC transmitida por via oral.

Métodos: Foram analisados os traçados eletrocardiográficos de 161 pacientes com quadro clínico, sorológico e parasitológico da DC em sua fase aguda, todos provavelmente contaminados por via oral, de janeiro 2009 a abril 2010, atendidos no Hospital das Clínicas Gaspar Viana, em Belém, PA, Brasil.

Resultados: Os resultados mostraram basicamente as mesmas alterações eletrocardiográficas clássicas descritas na fase aguda da doença, sugerindo não haver diferenças significativas entre as miocardites ocasionadas pela transmissão oral em comparação àquelas da transmissão vetorial e sanguínea.

Conclusão: As alterações eletrocardiográficas da DC na fase aguda são similares às da doença contraída pela forma vetorial em zonas endêmicas.

Introdução

Durante muito tempo a Amazônia foi considerada área de baixo risco para a DC. Todavia, recentemente vem sendo reconhecida como problema emergente e, infelizmente, negligenciado na região, com centenas de casos descritos nas últimas décadas, a maioria no estado do Pará, em microepidemias ou em casos isolados1. Também têm sido relatadas séries de casos de cardiopatia chagásica crônica (CCC) em pacientes autóctones da Amazônia2.
1Faculdade de Medicina – Universidade Federal do Pará – Belém,PA – Brasil
2Serviço de Cardiologia – Universidade Estadual de Ciências da Saúde de Alagoas – Maceió,AL – Brasil
3Disciplina de Cardiologia – Escola Paulista de Medicina – Universidade Federal de São Paulo – São Paulo, SP – Brasil

Informações do Ministério da Saúde indicam que de 2005 a 2009 foram notificados 455 casos de DC aguda no Brasil, dos quais 389 (85,5%) ocorreram na região norte do país, sendo 310 (68,1%) no Pará e 29 (6,3%) casos no estado do Amazonas3,4.

O objetivo deste estudo foi relatar as alterações eletrocardiográficas observadas na fase aguda da DC transmitida por via oral e alertar a comunidade científica e autoridades de saúde para essa forma de contaminação pelo Trypanosoma cruzi, menos conhecida, porém não menos grave, dada a facilidade de contaminação com alimentos mal processados.

Métodos

De janeiro 2009 a abril 2010 foram analisados os traçados de eletrocardiograma (ECG) de 166 pacientes atendidos no Hospital das Clínicas Gaspar Viana, em Belém, PA, Brasil. Os indivíduos apresentavam quadro clínico, sorológico e parasitológico da DC em sua forma aguda, e eram provenientes de diversas áreas da Amazônia Brasileira, sem histórico de viagens para outros locais, razão por que foram considerados casos autóctones.

Foram excluídos do estudo cinco pacientes, por suspeita clínica de doença cardíaca prévia. O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal do Pará, sob o nº 070/2009.

O diagnóstico laboratorial foi feito de modo direto e indireto. Foram considerados casos agudos aqueles que apresentaram exames parasitológicos diretos (a fresco, gota espessa ou método de Strout) e/ou IgM anti-Tripanossoma cruzi positivos no teste de hemaglutinação, ELISA e/ou imunofluorescência indireta, com títulos =1:40. Todas as análises foram realizadas no Instituto Evandro Chagas e no Laboratório Central do Pará.

A grande maioria dos pacientes, cerca de 90% dos casos, tinha, sabidamente, histórico de ingestão de suco de açaí ou bacaba (açaí branco) nas últimas três semanas.

Eletrocardiograma

Realizou-se ECG de 12 derivações, em repouso, com o paciente em posição supina, velocidade de registro de 25 mm/s, calibração padronizada para 1,0 mV/ cm, aparelho digital da marca TEB (São Paulo, SP, Brasil). O traçado foi decodificado e, para isso, utilizou-se lupa com escala em milímetros em sua face de contato com o traçado, o que permitiu maior precisão da análise. As variáveis: onda P, intervalo PR, complexo QRS, onda T, intervalo QT e segmento ST foram avaliadas pelo mesmo observador, um cardiologista com mais de 30 anos de experiência em eletrocardiografia.

Resultados

Dos 161 pacientes incluídos no estudo, 68 (57,8%) eram mulheres. A média de idade foi 33,5±16,1 anos(18 a 84 anos). Na Tabela 1 acham-se resumidas as principais alterações eletrocardiográficas verificadas na série estudada. Foi comum a simultaneidade de vários distúrbios num mesmo paciente. Três pacientes evoluíram ao óbito por quadro de insuficiência cardíaca refratária ao tratamento clínico.

Discussão

A Amazônia é considerada hipoendêmica para DC2. Contudo, ultimamente têm ocorrido casos agudos, em surtos, conforme salientado na parte introdutória deste trabalho. Em relação à doença crônica, estima-se a prevalência na região em 1% a 3%, com risco mais elevado em algumas subregiões4,5. Surtos da DC têm sido descritos em áreas às margens de rios Negro e Solimões ealgumas características sugerem transmissão por via oral, relacionada ao consumo de suco de açaí ou bacaba frescos, com precária higienização do fruto ou dos equipamentos para a produção artesanal do sumo2,4 .

Esta forma de transmissão da DC é objeto de interesse em publicações recentes e um novo desafio a ser enfrentado pelos órgãos de vigilância sanitária. Na infecção por tal via a apresentação da doença é, quase sempre, aparente e polissintomática, mas com relativa benignidade de prognósticos imediatos1,4, embora na população aqui avaliada tenham ocorrido três (1,8%) óbitos por insuficiência cardíaca aguda e refratária ao tratamento instituído.

Os indivíduos que se contaminam por via oral, a depender da quantidade do inóculo, podem evoluir com infecções parasitárias maciças ou eliminar o parasito, antes mesmo que ele possa causar infecção.

Entretanto, cargas maiores de inóculo ou cepas mais agressivas podem determinar doença mais grave4. A forma oral de contaminação da DC é um desafio a ser vencido pelos serviços públicos de saúde do Brasil.

Em se tratando de agente etiológico, têm sido descritos, na Amazônia, o Trypanosoma cruzi dos grupos zimodemas 1,3 ou híbrído Z1/Z3, cepas diferentes das encontradas nas zonas tradicionalmente endêmicas do Brasil, onde predomina o zimodema 25.

Não se conhece completamente a patogenicidade das cepas amazônicas, porém acredita-se que acarretem morbidade menor do que aquelas observadas em áreas endêmicas do país 2,5.

Quanto às alterações eletrocardiográficas, são muito comuns na CCC e, frequentemente, constituem o primeiro indicador do surgimento da doença 6.

Inicialmente, essas alterações são caracterizadas por retardos transitórios ou fixos da condução atrioventricular, da condução pelo ramo direito, alterações da repolarização ventricular ou extrassístoles ventriculares6. Na evolução do quadro, sobretudo quando aparece disfunção contrátil, global ou segmentar, as alterações eletrocardiográficas se tornam marcantes e têm implicações prognósticas 6,7.

Na CCC é usual a ocorrência de vários distúrbios do ritmo e da condução atrioventricular, sendo a concomitância do bloqueio completo do ramo direito e do bloqueio divisional anterossuperior esquerdo a mais presente (>50% dos pacientes)6. Já na fase aguda da DC, as alterações mais comumente descritas são taquicardia sinusal, baixa voltagem dos complexos QRS, prolongamento do intervalo PR e/ou QT e alterações da repolarização ventricular5. As arritmias ventriculares, fibrilação atrial e bloqueio do ramo direito são situações que apontam para pior prognóstico 8.

Na série aqui estudada quase todas as modificações eletrocardiográficas classicamente descritas na literatura foram encontradas, merecendo destaque a alta ocorrência de alterações da repolarização ventricular, presente em mais de 70% dos casos. Além das já citadas, cabe ressaltar a presença de sobrecarga atrial esquerda, zonas eletricamente inativas, dissociação atrioventricular e complexo QRS alargado (=0,12 ms) sem, no entanto, nenhum registro de bloqueio do ramo esquerdo, sugerindo que não haja diferença significante na miocardite aguda causada pela transmissão oral, comparativamente à miocardite ocasionada pela contaminação vetorial ou sanguínea, meios de contaminação mais conhecidos e estudados em regiões endêmicas.
Conclusão
As alterações eletrocardiográficas da fase aguda são similares àquelas observadas quando a doença é contraída de outras formas, em zonas endêmicas.
Potencial Conflito de Interesses
Declaro não haver conflitos de interesses pertinentes.
Fontes de Financiamento
O presente estudo não teve fontes de financiamento externas.
Vinculação Acadêmica
O presente estudo não está vinculado a qualquer programa de pós-graduação.
Referências
1. Pinto AYN, Valente SA, Valente VC, Ferreira-Júnior AG, Coura JR. Fase aguda da doença de Chagas na Amazônia Brasileira: estudo de 233 casos do Pará, Amapá e Maranhão observados entre 1988 e 2005. Rev Soc Bras Med Trop. 2008;41(6):602-14.
2. Ferreira JMBB, Guerra JAO, Magalhães BML, Coelho LIARC, Maciel MG, Barbosa MGV. Cardiopatia chagásica crônica na Amazônia: uma etiologia a ser lembrada. Arq Bras Cardiol. 2009;93(6):e93-5, e107-9.
3. Ministério da Saúde. Casos de doença de Chagas aguda (DCA). Brasil, grandes regiões e unidades federadas, 2005 a 2009. [acesso em 2009 maio 10]. Disponível em <http://portal.saude.gov.br/portal/arquivos/pdf/ tabchagas casos 0509.pdf>
4. Monteiro WM, Barbosa MGV, Toledo MJO, Fé FA, Fé NF. Série de casos agudos de doença de Chagas atendidos num serviço terciário de Manaus, Estado do Amazonas, de 1980 a 2006. Rev Soc Bras Med Trop. 2010;43(2):207-10.
5. Aguilar HM, Abad-Franch F, Dias JC, Junqueira AC, Coura JR. Chagas disease in the Amazon Region. Mem Inst Oswaldo Cruz. 2007;102(Suppl 1):47-56.
6. Andrade JP, Marin-Neto JA, Paola AAV, Vilas-Boas F, Oliveira GMM, Bacal F, et al. I Diretriz Latino-Americana para o diagnóstico e tratamento da cardiopatia chagásica. Arq Bras Cardiol. 2011;97(2 supl. 3):1-48.
7. Porto CC. O eletrocardiograma no prognóstico e evolução da doença de Chagas. Arq Bras Cardiol. 1964;17:313-46.
8. Prata A. Clinical and epidemiological aspects of Chagas disease. Lancet Infect Dis. 2001;1(2):92-100.

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